quinta-feira, 26 de maio de 2011

CENA 4


Como é possível que alguém continue cultuando uma pessoa que já não está entre nós? Tudo bem que ele pode ter representado algo a ela enquanto vivo, mas agora não pode lhe oferecer mais nada. Não importa o que eles viveram, o que importa realmente é o presente e nesse presente o casalzinho de conto de fadas, já não existe mais. Mas o que para alguns não faz o menor sentido, para outros acaba sendo impossível desgarrar-se da eterna lembrança.

- E o que isso tem de mais? – Perguntou a garota.

- Isso. Talvez esta seja a resposta, “de mais”. Sua obsessão chegou a ser “de mais”. Loucura “de mais”...

- Você sabe que isso não é verdade. – Disse a jovem interrompendo.

- Como não? – Perguntei em um tom mais elevado. – Mesmo depois de anos você continua tendo fotos dele no Orkut. Você vive presa a um passado que jamais retornará.

- Também não precisa falar assim. – Seus olhos marejaram.

- Preciso sim. Você desistiu de viver, parou no tempo. – Disse abaixando o tom de voz.

- Sim claro. Você tem todo o direito de cobrar isso de alguém. – Seu tom de ironia era bastante visível. – Não é mesmo?

- São casos completamente diferentes. – Respondi.

- Lógico que são. Eu tive motivos, vi meu mundo desmoronar em uma idade onde somente a sua construção deveria existir. Não fui um covarde que se absteve de viver por puro medo.

 - ... – Por alguns instantes não consegui esboçar qualquer reação. Pouco depois sem encará-la disse – Não desvie o assunto, não é sobre mim a discussão aqui.

- Por que se esconde? Você...

- Já disse. – Interrompi – Essa conversa não é sobre mim. Estou tentando entender você e não me confessando. – Encerrei assim qualquer tentativa de continuar o assunto.

- É tão complicado assim? – Perguntou com um tom mais brando parecendo voltar ao antigo assunto – Isso é algo que se sente, vive junto com você, está dentro do peito. Não é uma coisa que se explique.

- Então pela tentativa de se continuar vivendo algo, sem uma explicação lógica, que já não existe você simplesmente abre mão de todo o resto? Prefere agarrar-se a uma lembrança?

- Você não entende. É um sentimento muito forte. Ele significa muito para mim e o que sinto por ele é algo que está bem vivo.

- Vejo que mesmo a depressão e a terapia não te ajudaram em nada. – Conclui demonstrando certa irritação.

- Aí que você se engana. Pois foi com isso que pude recobrar a consciência, aceitar não, mas talvez entender um pouco e ter forças para tentar voltar a viver. – Concluiu segurando as lágrimas.

- O que está no passado, mas não no presente, é porque não valeu à pena e não merece sequer ser lembrado. – Disse sem olhar para aquela que limpava uma lágrima.

- Não tem o direito de falar sobre isso. – Disse em um tom autoritário – Uma pessoa que não consegue entender as sutilezas desse sentimento, jamais deve julgar outro alguém.
              
- Sabe de uma coisa? – Perguntei voltando a encará-la desde minha última frase.

- O que é? – Respondeu me desafiando.

- Essa devoção cega por seu namorado morto é algo irracional, sem sentido e... – Por um momento virei o rosto tentando não completar a frase, mas voltando a encará-la continuei – ... idiota.

- Como pode dizer isso? – Perguntou ela deixando todo o sentimento reprimido tomar o controle. – Você... – Faz uma pausa e mesmo visivelmente abatida continua – Você que é um idiota. – Gritava enquanto lágrimas percorriam sua face.

- Mas... – Todo sem jeito e completamente desarmado procurava um meio de continuar – É... algo assim que... que eu sempre procurei nas pessoas. – Gaguejei para dizer o que estava preso em mim.

Segundos após a frase repicada e um pouco de espanto, ela me abraçou. Como é possível que alguém continue cultuando uma pessoa que já não está entre nós? Simplesmente pelo fato disso representar algo para quem esta pessoa é importante. Momentos vividos tornam-se lembranças para a vida toda, o que de certa forma nos preenche. Estando em constante construção e mudança, nós crescemos e evoluímos a partir da vivência com tudo que está ao nosso redor. Porém são nossas lembranças e o modo como vivemos que nos define e nos distingue na multidão.
Lord Marshall

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